O documentário clássico 'Fahrenheit 11 de Setembro' (Fahrenheit 09/11 - 2004), escrito, produzido e dirigido por Michael Moore, lançado nos cinemas 3 anos depois do maior ataque terrorista já realizado em território estadunidense, que destruiu as torres gêmeas do World Trade Center, é um dos filmes mais contundentes e reveladores sobre os meandros de um governo norte-americano, no caso específico de George W. Bush, em relação à omissão e à incompetência no desenrolar das investigações do atentado.
O cineasta Michael Moore juntou ao documentário muitos vídeos, imagens de arquivo, documentos, dezenas de entrevistas e criou um filme pós-atentado que tenta dar uma luz sobre os motivos que levaram o governo norte-americano dos EUA a dar um desdobramento satisfatório sobre a causa, causadores no caso o grupo Al Qaeda e mentor Osama Bin Laden, líder dessa facção terrorista e que preparou o atentado durante anos.
Mas 'Fahrenheit 11/09' é um libelo anti-Bush, com uma exposição milimetricamente calculada ao mostrar como ele foi eleito de maneira fraudulenta no ano de 2000, anulando votos de minorias negras na Flórida e proporcionando uma das maiores barrigadas jornalísticas na TV americana, quando o então concorrente de Bush, Al Gore, foi anunciado como vencedor das eleições por diversas redes, minutos antes de encerrar a apuração no Estado.
No entanto, a rede Fox News Channel, um canal de notícias comandado por republicanos e com viés de direita, contrariou a todos e anunciou a vitória de George W. Bush, com uma margem pequena. O que acabou causando um efeito cascata e fez com que as outras redes de TV e canais refizessem a notícia, confirmando que a Fox teve acesso a uma informação privilegiada sobre os votos da Flórida, que foram fornecidos pelo então governador, aliado de Bush e que tinha grande influência no canal.
Essa desestabilização política nos EUA acabou causando um grande furor contrário a Bush, que teve dificuldades em sua posse, quando o veículo que estava a caminho do Capitólio — uma tradicional cerimônia presidencial — foi apedrejado pela população que estava no trajeto, o que resultou, pela primeira vez em sua história, na quebra de um protocolo de posse de um presidente estadunidense.
Esse é o início punk do documentário e logo ficamos sabendo que o protagonista será mesmo Bush.
Em 2001, vindo de uma queda de popularidade e de ter que se dar férias forçadas, Bush, na semana em que voltou a trabalhar, dia 11 de setembro, em uma visita a uma escola pública, como parte de uma nova política sua de ficar mais popular e acessível, teria que acompanhar a leitura de crianças numa aula e, depois, ele mesmo ler um conto infantil para essas mesmas crianças.
Em tempo real, Moore mostra que, nessa ação do presidente na escola infantil, ao mesmo tempo em Nova Iorque, o primeiro avião, o voo 11 da American Airlines, se chocava com a primeira torre. Não me perguntem como, mas há o vídeo talvez da assessoria de comunicação da presidência registrando Bush sentado dentro da sala, cercado de crianças, quando alguém cochicha em seu ouvido que uma das torres do World Trade Center foi atingida por um avião. Bush se mantém imóvel, prosseguindo com as crianças. Doze minutos depois, o voo 175 da United Airlines se choca na segunda torre, configurando então que se tratava de um ataque armado, ou seja, um atentado terrorista no coração financeiro dos EUA.
Um dos assessores de Bush cochicha novamente em seu ouvido e avisa que Nova Iorque está sob ataque terrorista, a segunda torre foi atingida. Impassível, Bush prossegue a leitura que estava fazendo, fica um tempo olhando para o nada, como se estivesse em estado de meditação. Por longos minutos ali, naquela sala de aula, parado.
Moore concilia as imagens dos ataques às torres somente através de áudio ele não mostra no filme os aviões se chocando, até mesmo como respeito às 2.753 vítimas desse ato. Porém, o som do impacto é ensurdecedor, enquanto aí sim mostra imagens da reação das pessoas nas ruas, calçadas, olhando para cima, chocadas, perplexas e muitas chorando. Esse é o grande impacto que o documentário vai mostrar desse atentado terrorista: a reação das pessoas, colocando o espectador na imersão do sentimento de perda e da brutal visão do inferno diante da destruição iminente de um dos símbolos do poderio norte-americano dos EUA.
Após isso, o documentário envereda então para o que parece ser uma teoria da conspiração genuína, ao expor que a passividade de Bush diante do ataque terrorista se deve a uma série de fatores que levam ao seu pai, o ex-presidente George H. W. Bush, e à sua sociedade e parceria com os árabes e, imaginem, com empresas petrolíferas que pertencem em sociedade à família Bin Laden. Isso mesmo: ficamos sabendo que membros da família Bin Laden moram e possuem negócios em território americano, com passagem e passaportes garantidos pelos sheiks árabes que são sócios da família Bush, entre outros políticos.
Em primeiro momento, 24 horas após a queda das torres gêmeas, o governo norte-americano priorizou, garantiu a segurança e a retirada da família Bin Laden dos EUA. Para dar suporte a isso, Moore entrevistou o embaixador saudita que ressalta que Osama era a 'ovelha negra' da família e que outros membros são mais tranquilos.
Mas o interessante é mostrar que, após os atentados, os EUA entraram num colapso aéreo sem precedentes, com aeroportos lotados, voos cancelados, vistorias e um rigor na segurança, mas a família Bin Laden foi privilegiada.
Entra em cena então dezenas de imagens de reuniões e encontros do Bush pai com sheiks, tanto na Arábia Saudita quanto nos EUA, em reuniões alegres e motivadas por petrodólares, mantendo significativamente empresas de royalties de grande poder financeiro saudita.
Além da investigação militar e federal sobre os responsáveis pelo atentado, Osama Bin Laden se tornou o terrorista mais procurado do mundo, responsável direto pelo planejamento e pela inserção dos terroristas que trabalharam anos nos EUA, infiltrados, com a missão de sequestrar os aviões que iriam destruir pontos-chave. Lembrando que o atentado no Pentágono não deu certo, apesar de uma destruição parcial.
E aí vem outro grande momento do documentário, quando, da sua metade para o fim, Moore mostra que o inimigo de Bush não era só Osama, mas supostamente Saddam Hussein, presidente do Iraque, que, através do então secretário de Defesa dos EUA, Colin Powell, apresentou supostas 'provas' de que havia um programa de armas químicas e nucleares que estava sendo mantido em território iraquiano. Com a pecha de avisar que Saddam era um apoiador e simpatizante de Osama, Bush conseguiu apoio do Reino Unido para desencadear uma invasão militar no Iraque de proporções gigantescas.
Então encontramos a razão da emoção que o filme quer passar ao ter acesso a imagens dos ataques do exército nas cidades iraquianas, sem distinguir soldados da população civil dizimando famílias, destroçando inocentes (crianças) e com os soldados estadunidenses comentando sua ação no território, falando de suas experiências. Alguns depoimentos são chocantes pela frieza de como matam sem controle algum, assassinando idosos, crianças e mulheres; outros falam do estresse emocional.
O cineasta toca num assunto que conhece como poucos: o investimento belicista dos EUA, que precisa alimentar a indústria de armamentos. É notável que eles têm a necessidade de estar em guerra em algum território alheio, para compra de armas, veículos, fardamentos, mobilização na indústria de alimentos. Toda uma rede de negócios que engaja e mantém as guerras particulares norte-americanas em funcionamento. Moore faz questão de ressaltar isso: guerra é negócio, e muito rentável para a indústria.
Para ter uma ideia, é feito um cálculo de risco de perdas e proporção na execução de mortes do 'inimigo' e dos seus soldados. Enquanto a coalizão EUA e Reino Unido em combate no Iraque resultou em centenas de milhares de mortes iraquianas, mais de 4.500 soldados norte-americanos morreram em combate durante o tempo em que essa guerra durou. Ela teve início em 2003 e foi finalizada em 2011, com a retirada final dos EUA autorizada pelo então presidente Barack Obama.
E afinal, existiam armas nucleares no Iraque? O que motivou a guerra? Não. Colin Powell, depois de anos, confirmou que estava sob forte pressão e que se enganou mentiu a respeito. E essa mentira proporcionou um dos maiores massacres militares já realizados no Oriente Médio.
Em determinado momento de 'Fahrenheit 11/09', Michael Moore mostra uma senhora cristã, democrata e extremamente patriota, que hasteia a bandeira dos EUA todos os dias de manhã, ritualisticamente, em congraçamento com seu ideal de ter uma família de militares, onde o avô, o pai e os irmãos são militares e atuaram em guerras ou invasões em países que ela chama de 'inimigos' da liberdade. No momento, o seu filho mais velho foi incentivado por ela e pela família a seguir a carreira militar e participar da guerra no Iraque.
Ela relata esse fato como um momento de grande orgulho e afirma que ele voltará como um herói nacional.
Enquanto isso o cineasta expõe outra situação conflitante e absurda, que o serviço militar americano estava com falta de soldados para participar da ação belicista no Iraque pois o número de baixas era grande , e o governo incentivou e financiou uma verdadeira campanha para alistar jovens estudantes secundaristas em bairros pobres e periféricos, com a promessa de ganhos futuros. Moore acompanha dois jovens soldados que vão a locais específicos de um bairro periférico aliciar adolescentes de 17 anos a se alistarem, até mesmo incentivando alguns a abandonar a escola.
No terço final, Moore resolve retornar à senhora patriota e acompanhar uma crise que ela passa em relação ao filho no Iraque. Eu não vou dar spoiler, mas assista para compreender como o orgulho americano é um fiapo de tecido, que pode ser exterminado com o fogo da dura realidade. É um soco no estômago.
'Fahrenheit 11 de Setembro' está disponível no YouTube, tanto com legendas quanto dublado, de forma integral.
O título do filme faz referência ao livro Fahrenheit 451 (233 °C), de 1953, do escritor Ray Bradbury, sendo essa a indicação de temperatura perfeita para queimar o papel — no caso, livros, como aponta a obra ficcional. O diretor aproveita para fazer uma alusão ao dia do atentado às torres gêmeas — 11/09.
O filme foi o grande vencedor no Festival de Cannes de 2004, recebendo a Palma de Ouro e consagrando o diretor Michael Moore, que em 2003 já havia recebido o Oscar pelo seu documentário 'Tiros em Columbine' (2002), para mim a sua obra-prima — um documentário contundente e barra pesada que destrincha por completo o massacre causado por dois estudantes armados na escola de Columbine e a indústria das armas.
Minha avaliação: no dia em que se lembra desse atentado terrível, esse filme continua perfeito em sua proposta e chocante.