Em determinado momento do filme, uma delegada federal, tentando proteger uma adolescente de 13 anos do pai que foi buscá-la, questiona os abusos sexuais que ele comete com a filha, e ele diz:
“Sou um homem de Deus e ela é a minha filha”.
Incrédula, a delegada olha para a menina, que se sente desamparada, e depois para um homem autoritário e chucro.
Esse trecho do filme dá a dimensão do problema que quer mostrar e acontece nas comunidades ribeirinhas da Ilha de Marajó, no Pará. Assim é o filme da diretora Marianna Brennand, “Manas”, que foi lançado nos cinemas brasileiros em maio de 2025, mas já circulava nos festivais de cinema mundo afora desde 2024.
A diretora teve a ideia de fazer o filme após saber de casos de exploração sexual de crianças – pré-adolescentes e adolescentes – relatados pela cantora Fafá de Belém, que há tempos vinha denunciando as jovens que vendiam seus corpos nas passagens das balsas do Rio Tajapuru, na Ilha de Marajó, local onde acontece a trama. É nesse cenário que a jovem Marcielle (Tielle) – a ótima Jamilli Correia, que não era atriz e teve que fazer uma preparação especial para o papel – de 13 anos, morando na beira do rio com a família, a mãe, o pai e três irmãos, descobre da pior forma que a sua maior proteção é também o seu maior medo.
A diretora, que escreveu o roteiro com outras cinco pessoas, teve todo um cuidado para criar uma história forte e que retratasse a triste realidade da comunidade, utilizando um elenco jovem de não atores, mas de pessoas que morassem na ilha. Por isso, criou um programa de interpretação cênica que usa a naturalidade dessas pessoas como força motriz nas atuações.
O elenco jovem, por exemplo, não teve acesso ao roteiro integral, para evitar complicações desnecessárias e que se desse uma conotação de sensacionalismo ou choque, principalmente para as meninas. Somente o elenco adulto sabia o teor real da história.
Para se ter uma ideia, no filme não há cenas explícitas ou simulação de sexo, mas apenas sugestões e o toque sutil da diretora em deixar que as cenas de abuso fossem realizadas de forma simbólica, no gestual delineado pelos personagens, numa composição que deixava margem para o óbvio. Como as cenas da “caçada” – que se tornarão emblemáticas.
A personagem Marcielle tem uma profundidade de história muito bem construída, pois, no retrato diário da vida familiar, acabamos por criar vínculos. Mas, claro, sempre atentos ao fato de que aquele ambiente que parece perfeito tem a atmosfera de que algo está errado, muito errado. Seja nos olhares sempre desconfiados ou tristes da mãe; na forma excessivamente carinhosa com que o pai trata ela e a irmãzinha mais nova; ou na rotina da escola.
Um dos pontos que acende o alerta é tentar compreender a fixação de Marcielle pela irmã mais velha, Cláudia, que fugiu com um balseiro dizendo à mãe que estava “indo morar com um homem bom”.
Cláudia não aparece no filme, mas é uma figura presente na vida da jovem, e Marcielle a torna viva para o espectador. A garota, em seus momentos de reflexão, busca entender o motivo que levou a irmã a fugir de casa, onde parece existir um ambiente familiar quase perfeito.
Preste atenção na personagem da atriz Dira Paes, uma servidora pública que ajuda Marcielle a tirar o seu RG e depois tem um retorno importante. Talvez ela tenha motivado a jovem ribeirinha a quebrar um ciclo de violência intrafamiliar que ecoa na omissão da mãe e no comportamento abusivo do pai.
“Manas” é um filme visualmente muito bonito, requintado na excelente fotografia de Pierre De Kerchove, que constrói tomadas impressionantes com luz natural, ambientações às vezes intimistas e recursos de iluminação sublimes que ajudam na composição de algumas sequências, como a abertura das roupas no varal.
Marcielle é a representatividade de centenas de meninas que, naquela localidade, vivem abusos intrafamiliares cometidos por pessoas que frequentam igrejas, se colocam como cristãs e apoiam suas decisões em um patriarcado servil às corruptelas sexuais da posse.
“Manas” é um filme forte, sutil em forma e explícito em mensagem, uma das melhores produções brasileiras deste ano. Não por acaso esteve selecionado entre os 15 filmes nacionais para concorrer à indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro – que acabou escolhendo “O Agente Secreto”, do diretor Kleber Mendonça Filho (o mesmo de Bacurau).
O filme está disponível na plataforma de streaming do TELECINE e pode ser alugado na Claro TV.